
A recente concessão do Jardim de Alah pela Prefeitura do Rio de Janeiro, em plena comemoração de seu centenário, representa um dos mais evidentes exemplos de privatização de um espaço público sob a justificativa de “revitalização”. No entanto, o que se apresenta como um projeto de modernização e sustentabilidade é, na verdade, uma descaracterização de um patrimônio histórico e ambiental, atendendo aos interesses de um pequeno grupo econômico em detrimento da população local.
O Jardim de Alah foi construído em 1920 pelo então prefeito Carlos Sampaio para renovar as águas da Lagoa Rodrigo de Freitas, tornando-as mais limpas. O canal é tombado pelo Decreto Municipal 20.300/2001 devido à sua importância cultural e histórica, sendo constituído por três praças: Almirante Saldanha da Gama, Grécia e Poeta Gibran. Além disso, está inserido na Área de Proteção do Ambiente Cultural (APAC) por meio do Decreto Municipal 23.161/2003.
Ao longo de sua existência, o Jardim de Alah consolidou-se como um dos espaços verdes mais relevantes da Zona Sul carioca. Entretanto, em vez de zelar por sua manutenção e preservação, a própria Prefeitura permitiu seu abandono para justificar uma concessão voltada à construção de um shopping, mesmo em uma região que já conta com dois grandes centros comerciais e diversas lojas vazias.
Em novembro de 2023, a Prefeitura assinou o consórcio do Jardim de Alah, permitindo o início das obras do projeto, apesar da oposição dos moradores locais. No entanto, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro contestou a legalidade da concessão e requereu a suspensão das obras, que estão paralisadas desde abril de 2024 devido a uma decisão liminar da 6ª Vara de Fazenda Pública da Capital.
Desde sua origem, o projeto já nasce envolto em ilegalidades. A Lei Orgânica do Município veda a concessão de áreas verdes, praças, parques, jardins e unidades de conservação por serem patrimônio público inalienável. Além disso, o Estatuto da Cidade exige aprovação do Poder Legislativo para projetos que desafetam grandes áreas públicas urbanas, o que também não ocorreu. Ou seja, a concessão foi feita sem a observância das principais normas municipais, demonstrando um enorme amadorismo jurídico.
Não obstante, recentemente a Prefeitura do Rio autorizou o corte de 130 árvores. Há quem estranhamente defenda esse “jabaculê” alegando serem árvores “invasoras”. Contudo, essa justificativa não se sustenta. Muitas dessas árvores são nativas da Mata Atlântica e estão lá há mais de 80 anos, servindo de habitat para diversas espécies de aves e contribuindo para a regulação climática do local. Não se trata apenas da remoção de vegetação; é a destruição de um ecossistema urbano. Além disso, o tempo para uma árvore nova atingir o mesmo conforto térmico é de décadas, o que agrava ainda mais o impacto ambiental da obra, sobretudo no período de calor extremo em que estamos vivendo.
Outra justificativa usada pelos defensores do corte de 130 árvores é a promessa de plantio de 300 novas árvores no parque e 1300 pela cidade. Primeiramente, vale ressaltar que plantam-se mudas, e não árvores, que se, por sorte, não forem vandalizadas e conseguirem sobreviver, levam no mínimo 15 anos para atingir a idade adulta e 25 anos para começarem a fornecer sombra. Aliás, há um grande risco de plantarem árvores menores, como coqueiros e palmeiras, em razão da pequena área disponível. E corolário, árvores novas não têm o mesmo poder de árvores centenárias de dar sombra e ser habitat de inúmeros animais que por lá vivem, tampouco de reconstruir um ecossistema urbano.
Num passado recente, o metrô destruiu parte da Praça da Grécia e foi condenado, junto com o Município, a restaurar o local, o que até hoje não foi cumprido. Da mesma forma, durante os Jogos Olímpicos, houve o compromisso de plantio de mudas na Floresta dos Atletas, em Deodoro, mas a Prefeitura abandonou o local.
Países modernos e desenvolvidos valorizam seus pontos turísticos, ao contrário do Rio de Janeiro que historicamente vem remando contra a maré. O bairro do Horto perdeu o triplo de árvores, nenhuma delas invasora, e o buraco na floresta permanece até hoje. Ipanema também tem sofrido com a retirada de diversas árvores ao longo dos anos, sem reposição. Enquanto isso, Paris anuncia planos para enfrentamento das mudanças climáticas, trocando vagas de carros por árvores, enquanto aqui se troca árvores por concreto. Se esses agente públicos defensores da concessão do Jardim de Alah estivessem em Paris, o Jardim de Luxemburgo já teria virado uma loja da Chanel.
Outro impacto ambiental dessa concessão recai sobre o canal do parque. O canal possui uma grande necessidade de ampliação para conseguir dar conta da troca das águas entre a lagoa e a praia. No entanto, a concessionária não desenvolveu nenhum projeto de ampliação do canal, ao contrário, virará as costas para o canal e não terá a menor responsabilidade com sua manutenção, além de gerar maior dificuldade para quem o for fazê-la. Aliás, o impacto gerado pelo aumento da poluição e da produção do lixo certamente recairá sob sob as águas do canal.
Antes da obra do metrô, existiam creches e quadras no Jardim de Alah, mas foram abandonadas. Sua reconstrução é uma obrigação, não uma justificativa para autorizar o corte de 130 árvores.
Portanto, os sucessivos abandonos do Jardim de Alah foram feitos pela própria Prefeitura ao não conservar a iluminação pública, ao não realizar a poda de árvore, ao não prezar pela conservação do parque, ao permitir a permanência de lixos e entulhos, ao não colocar guarda municipal para conservação do bem público. O sucessivo abandono intencional de um lugar tão potente que serve como área de respiro dos bairros contíguos, serviu para usá-las como moeda de troca em concessão para empresários que pretendem transformá-la em um shopping a céu aberto em que poucos ganharão, manipulando a população com desinformações através de marionetes usadas para defender o indefensável corte de 130 árvores.
Não há nenhuma contrapartida para a Prefeitura, ao contrário, inicialmente, o edital previu o pagamento de 6% da receita bruta anual. Posteriormente, baixou-se para 3% e, após, para 2%. Ademais, o edital não previu a cobrança de IPTU das empresas, contrariando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
A destruição do Jardim de Alah é mais um episódio na triste tradição carioca de apagar sua própria história. Em vez de estarmos celebrando o centenário do Palácio Monroe como sede do Senado Federal, que foi demolido pelo Estado em 1976 sob falsas justificativas de modernização, assistimos agora ao mesmo processo de apagamento e privatização de um dos espaços públicos verdes mais importantes da cidade.
Qualquer tentativa legislativa de destombamento do bem ou de alteração da Lei Orgânica, ou do Estatuto das Cidades, representará uma estranha manobra e um grande retrocesso. Nossa geração ficará marcada na história por esse retrocesso.
Existem diversos laudos técnicos sobre o impacto negativo do projeto. Cabe ressaltar que a concessão não apresentou estudo de impacto ambiental, tampouco estudo de impacto de vizinhança (obrigatório pelo Estatuto das Cidades). Urge destacar que em tempos de “choque de civilidade”, haverá o aumento exponencial da poluição sonora em função da ausência de acústica.
Afinal, nada melhor para acabar com o “abandono” do Jardim de Alah e torná-lo mais verde do que cortar 130 árvores e transformar um parque público em um templo de consumo de luxo, trocando uma área verde histórica para dar lugar a um ambiente totalmente refrigerado, como um shopping (contém ironia).
Fonte: diariodorio.com